O futebol raiz como resistência à elitização

 


O futebol brasileiro, de início, não nasceu do povo e para o povo; ao contrário, foi concebido pelas camadas mais altas da sociedade. Mas não demorou muito para que a bola chegasse ao asfalto quente, na terra batida das periferias, nos campos improvisados onde os chinelos e latas amassadas eram feitos de trave. É nesse ambiente que o talento brota da necessidade, que vive o verdadeiro futebol raiz.


Essa paixão contagiante virou uma herança de pai para filho, e o palco em que esse sentimento se encontrava com a história era a arquibancada popular, principalmente a lendária geral do Maracanã. A geral não era meramente um setor do estádio: era um símbolo de pertencimento. Era o lugar onde o povo se fazia presente, onde a emoção se vivia com os pés no concreto e a alma no jogo. Um ingresso barato permitia que o trabalhador, o ambulante, a costureira, o estudante da rede pública pudessem sentir o gol com a mesma intensidade de quem ganhava milhões para estar em campo. Era suor, era grito, era lágrima. Era Brasil.




Com o processo de modernização dos estádios e a simultânea elitização do futebol, esse espaço foi sendo apagado - e com ele, um pedaço importante da nossa identidade. A geral foi extinta, e o Maracanã virou arena. O ingresso virou artigo de luxo e, hoje, assistir a uma partida in loco virou um privilégio, não um direito cultural. O povo foi expulso do templo que ele mesmo construiu com suas palmas, cantos e bandeiras improvisadas.


O futebol foi ficando silencioso. Mais limpo e mais bonito aos olhos do mercado, mas frio. As verdadeiras arquibancadas não se medem por design ou cadeiras acolchoadas, e sim por emoção, por vivência, por comunidade. O futebol moderno se curva à lógica do capital: aos poucos, clubes se tornaram empresas, estádios viraram vitrines, e o torcedor virou apenas um consumidor. Quem não pode pagar, não entra. Quem grita demais, é reprimido. Quem canta com o coração, é substituído por um jingle de patrocinador.




Mas o futebol, em sua essência, é rebelião; uma resposta à injustiça, lugar de acolhimento para quem não tem mais onde sonhar. Foi através dele que muitas crianças das favelas vislumbraram um futuro, que o povo enfrentou ditaduras, racismo, e exclusões diversas. Nos setores populares, se criavam redes de afeto, solidariedade e resistência. Hoje, com o dinheiro tomando cada vez mais espaço, tudo isso parece distante e até mesmo utópico. 


É imprescindível lembrar (e cobrar) que o futebol não é mercadoria. Ele é cultura, memória coletiva e, antes de tudo, um direito social; e não pode continuar sendo sequestrado por uma elite que consome o esporte sem conhecer sua essência.




Resgatar a alma desse esporte é devolver ao povo o que é dele. Garantir que o menino que joga descalço no morro possa ver seu ídolo ao vivo, sem precisar escolher entre o ingresso e o almoço. Permitir que a arquibancada volte a ser lugar de encontro, vibração e liberdade.

Enquanto houver um campo de terra, uma bola e um sonho, o futebol raiz continuará vivo. Mais do que sobreviver à margem, ele merece o centro dos gramados. E o povo precisa estar lá. Não do lado de fora, mas dentro, onde sempre esteve.

Pedro Frozza






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